2) Paraísos Perdidos
Num dos últimos dias de minha
estadia no Amapá, vésperas de eu deixar Thomas prosseguir sua viagem pelas
Guianas, ele finalmente me confessou que ver a natureza dessa remota região do
país não era o seu único desejo quando ele decidiu virmos para cá. Na verdade,
a viagem tinha também o seu componente social-antropológico. Ele queria ver de
perto se havia alguma característica peculiar neste pedaço de sociedade
brasileira. Sendo um europeu, ele esperava que manter as características
culturais, sociológicas, etnográficas fosse um dos maiores bens que uma
comunidade poderia almejar. Para alcançar esse objetivo os europeus são capazes
de pagar preços altíssimos, até mesmo criar um país onde se tem oficialmente
quatro línguas, diferentes leis, culturas e tradições – como é o caso da Suíça
(de perto, isso soa muito mais esquisito do que parece na teoria, como eu pude
constatar meses atrás quando fiquei lá por uma semana). A tradição, a cultura,
as particularidades locais, são bens sagrados, a serem preservados e
orgulhosamente mantidos e exibidos. No Brasil, imagino que os gaúchos, os
mineiros e, em certa medida, os nordestinos têm algo parecido com esse orgulho
local que os europeus tanto prezam. Mas não chega nem perto do esforço que as
pessoas nas cidadezinhas do Velho Continente fazem para efetivamente manter as suas
tradições. E com relação a este quesito, Thomas ficou um tanto quanto
decepcionado. Depois de viajar literalmente do Oiapoque ao Chuí, ele não
encontrou grandes diferenças sociais que marquem, por exemplo, o comportamento
de um jovem no Amapá, em São Paulo, ou no Rio Grande do Sul. “Podemos ver isso
pelo lado bom ou pelo lado ruim...” – consola-se ele.
O que é difícil mesmo é concluir
que o desenvolvimento da civilidade e da educação qualificada nas pessoas
demora muito, mas muito mais tempo que o aumento de suas contas bancárias e de
seus bolsos (principalmente depois de anos de crescimento econômico rápido como
o que observamos nos últimos anos). E essa é uma observação da economista que
vos escreve. Eu também tento me consolar, lembrando que esse é um fenômeno mundial:
países que enriquecem rápido, no primeiro momento, apresentam bizarrices como
gente semi-analfabeta tendo recursos materiais para criar muito lixo e destruir
o meio ambiente da pior forma possível, gente que incomoda os vizinhos com o
barulho de seus sons super potentes (com música da pior qualidade possível...),
gente que não sabe ler mas que tem um carro enorme que pode atropelar qualquer
um num piscar de olhos, etc. É claro que o calor humano ainda existe e, com
raras exceções, tende a ser maior nessas cidades pequenas e remotas do que em
grandes centros urbanos (moro há seis anos exatamente no mesmo lugar, e até
hoje não sei o nome de meus vizinhos de porta, muito menos o que eles fazem – e
tenho a certeza absoluta que idem eles com relação a minha pessoa...). Mas,
infelizmente, esse tipo de cordialidade é a primeira coisa que se perde quando
o dinheiro e mais pessoas chegam a um lugar.
Assim sendo, tivemos mesmo que
focar na parte ecológica da nossa viagem, que, felizmente, não deixou nada a
desejar.
O lugar que ficará para sempre em
minha memória não tem nome especial, ou se tem, eu não sei e deve estar bem
escondidinho em algum lugar (como todas as outras informações que possam
interessar ao turista no Amapá... parece que nem os locais sabem ou se importam
com elas, o que é outra coisa para se entristecer...). Em Calçoene, a última
cidade onde o asfalto da BR 156 chega, ouvimos dizer da Praia do Goiabal, a 24
km do “centro”. Era uma praia de verdade, depois de onde o Rio Amazonas
desemboca. Decidimos pegar um dos moto-táxis da associação da cidade (não
existem táxis em Calçoene). Eu tive a sorte de conhecer o Carlos, um
ex-professor do Ensino Fundamental que teve a iniciativa de criar a associação
– uma das pessoas mais educadas que conheci nessa viagem. Fui na garoupa dele,
enquanto Thomas foi no do irmão do Carlos. As duas motos levaram uns 40 minutos
até chegar na praia. O Goiabal era bem interessante, com bandos de pássaros, paisagem
bonita, algumas casinhas cujos donos se preparavam para a chegada dos turistas
das férias de verão. Mas ficar lá não era o nosso objetivo principal. O
programa do dia era fazer a pé todo o trajeto dos 24 km de volta para a cidade.
Eu confesso que fiz uma grande preparação psicológica e mental na véspera. É
verdade que eu já havia feito no começo do ano com o Thomas 20 km num só dia,
no interior do Peru (10km na ida e 10km na volta a um pequeno vilarejo). A
diferença era que estávamos bem na linha do Equador, em pleno verão,
caminharíamos bem ao meio dia, e fazia uns 35o C... No entanto, a
rápida passagem de moto pelo trajeto me fez vibrar e esquecer completamente a
ansiedade da longa caminhada que estava por vir. E de fato, isso foi o que me
motivou: chegar logo naquela enoooooooorme área, de vegetação bem rasteira,
basicamente gramíneas, mas inundada com água que vinha dos vários grandes rios
por perto. Uma área de aproximadamente dois bairros inteiros de São Paulo, onde
se viam apenas algumas palmeiras e pequenos oásis que – como lembrei-me mais
tarde – os livros textos do Ensino Fundamental nos ensinam como sendo os
“igarapés”. Parecia tudo tão enfadonho na época quando estudei, ficar decorando
os vários tipos de vegetação da Amazônia e lembrar que “os igarapés não são mata
fechada, mas áreas abertas e permanentemente inundadas”. Ao vivo era tudo TÃO
LINDO!!! O que era mais espetacular além da imensidão de gramíneas inundadas de
água, das palmeiras aglutinadas, da água calmíssima e impressionantemente
clara, era a enooooooorme quantidade de animais. Claro... onde a o homem não
chega, a natureza se encarrega de manter o equílibro do biossistema da flora e
da fauna, a teoria já diz, mas olhar na prática é MUITO mais belo de se
entender... Aves, aves, aves de todos os tipos: garças brancas, garças
vermelhas de um vermelho fogo ofuscante – chamadas de íbis, passarinhos
pequenos azuis, vermelhos-sangue, amarelos, pretos, ... Depois búfalos, vacas,
cavalos, ovelhas... E também, peixes pulmonados nadando na superfície da rasa
água dos igarapés (eles desenvolveram pulmões pela quantidade presença de água
e por causa da época das secas, já diziam os programas do “Animal Planet”...)
Todos se aproveitando da riqueza natural daquele campo enorme, despreocupados
porque a mãe natureza daria conta de tudo e de todos e para sempre, se o homo “sapiens” não aparecesse... Em nossos ouvidos
passavam somente as vibrações do piado dos pássaros, do leve movimento das
águas e, do barulho do vento soprando pelos buracos feitos pelos cupins na
madeira oca dos postes de eletricidade, tal como uma flauta natural. Nada, nada
mais. O céu azul, os grandes
flocos de nuvens brancas e uma canoazinha estacionada nas águas do igarapé
completavam o cenário sublime. Foi a imagem desse perfeito paraíso na terra,
gravada em nossas mentes, que nos deu força para fazer a caminhada de nada
menos de 6 horas.
Mas, no Amapá, não é preciso se
afastar completamente da humanidade, e nem caminhar 24 km para se ter um pedaço
do paraíso. Percorrendo por todo o estado, percebemos que existiam diversos
“balneários”, ou, simplesmente, locais com alguma infra-estrutura à beira de
algum rio, riacho ou igarapé, que oferecem alguma diversão às pessoas. Na saída
de Calçoene, perto do trevo da rodovia onde termina o asfalto da BR 156, a uns
4 km da cidade, havia um pequeno balneário desses, com o sugestivo nome de “Pau
Pintado” (na verdade, o balneário mais famoso de Calçoene, e que estávamos
efetivamente procurando, chamava-se Asa Berta; mas ninguém soube nos dar
informações de como chegar, e fomos andando e chegamos no outro...) Uma pequena
piscina natural com águas absolutamente cristalinas, peixinhos que vêm “picar”
as células mortas de nossas pernas e barriga, pedras estrategicamente
posicionadas para o nosso descanso, e árvores oferecendo uma mais-que-perfeita
sombra naquele calor do verão equatorial. Talvez por ser dia de semana, o balneário
estava completamente vazio, com exceção do dono do bar. Perfeito, estávamos livres
do barulho da música ruim, que certamente apareceria se houvesse um grupo maior
de pessoas. Pegamos, cada um, uma latinha de refrigerante gelado e fomos sentar
no meio da piscina natural, com metade do corpo dentro d’água, sentindo as
leves mordiscadas dos peixinhos e aproveitando do silêncio e da beleza da
natureza. No meio disso tudo, Thomas lembrou – de repente – que era o aniversário
dele... Certamente, um aniversário inesquecível!